Um casal na madrugada da Cracolândia me ensinou sobre missão, motivação, trabalho e reconhecimento.
Virei a madrugada na cracolândia, ou Boca do Lixo, no Centro de São Paulo, participando do projeto de Missões Urbanas Cena. As fotos da cracolândia que ilustram esse post eu fiz em rolês anteriores durante o dia.
A madrugada foi intensa: viciados, pressão da polícia, spray de pimenta (não em mim, mas bem perto), comércio de bugigangas, respeito dos viciados pelo pessoal do Cena, crianças, velhos, mulheres, homens, cachorros, ratos, muitas histórias. Nós, da missão, somos praticamente invisíveis. Segundo o pessoal do Cena os locais só vêem duas coisas: dinheiro e crack.
Nos aproximamos de alguns individualmente, perguntamos nome, história, deixamos palavras de esperança e o convite pra receber ajuda na sede do Cena. No expediente da sede o morador da região recebe atenção, higiene pessoal, roupas, comida, assistência médica e jurídica e a oportunidade de ir pra uma clínica de recuperação, se assim ele desejar.
Já ouvi dizer que os viciados estão lá por escolha própria, concordo que parte deles sim, está lá por consequência de escolhas que fizeram, mas me pergunto: Uma criança de 10 anos, viciada em crack, com o pé inchado de andar descalço, que mal consegue conversar por sequelas da droga, teve tempo de fazer escolhas?
Trouxe muitas histórias dessa experiência, aprendi muito mais com eles que eles comigo, e quero compartilhar uma história especial:Madrugada de sexta pra sábado, 3am, cracolândia, Centro de São Paulo, os viciados chegam a fechar a rua. Num cruzamento contei aproximadamente 80 pessoas em volta de nós, comprando, vendendo, trocando, conversando, gritando e, principalmente, fumando crack. O barulho é ensurdecedor, não pelos decibéis – que se aproximam de uma praça de alimentação de shopping lotada ou pátio de escola em recreio -, mas pela tensão, há violência, dificilmente física, mas sempre psicológica e social. É como estar dentro de um barril de pólvora rolando ladeira abaixo.
Em meio ao frenesi da madrugada na Cracolândia, passou um casal: senhor de aproximadamente 50 anos, guarda-chuva na mão, Bíblia embaixo do braço, roupas simples, camisa, calça social, sapatos. A esposa de mesma faixa etária usava saia até os joelhos, blusa branca, bolsa pequena na mão, cabelo amarrado, Bíblia embaixo do braço também. Eles não tem ligação com o Missão Cena. Observei o comportamento dos dois por algum tempo.
O casal passava em meio aos viciados, abordava um deles por 3 segundos pra dizer bem baixinho “Jesus te ama”, ou “Deus de abençoe meu filho”, e seguia a caminhada pra abençoar mais um, discretamente. Os dois não demonstravam medo, dúvida, nojo, desprezo. Não esperavam que o viciado se convertesse naquela abordagem e não alongavam a interação.
Eram 3 da madrugada de sexta pra sábado, eles podiam estar em casa dormindo, fazendo sexo entre si, ou ela fazendo sexo com o vizinho e ele com uma mulher de 20, ou trabalhando numa lanchonete 24h, ou bebendo e se divertindo num bar. Mas eles estavam na cracolândia, caminhando onde eu não tenho vontade de andar, respirando um ar que me fez sentir vontade de vomitar o resto da noite, falando com gente que eu não queria acreditar existir, colocando em risco a vida do cônjuge e a sua própria.
O casal estava lá pra dar atenção, por acreditar ser importante levar uma mensagem de esperança, por acreditar nunca ser tarde pra recuperação. Fazem isso com motivação e sem esperar reconhecimento de qualquer outra pessoa. Nenhum ser humano fora dali vê ou reconhece seu trabalho – eu estou reconhecendo, mas nem sei seus nomes -, não há promoção garantida, recompensa em dinheiro, acúmulo de bens materiais. Eles fazem aquilo que acreditam ser certo, e vão embora incógnitos, pra voltar daqui uns dias e continuar a missão.
Amor incondicional é isso.
Se, em 50 anos de “Deus te abençoe” sussurrados na cracolândia, o amor desse casal ajudar a libertar um único viciado, quem esteve lá ontem sabe que valeu o esforço.
fonte: blogdomarcogomes