Para ser aprovado, aspirante deve saber como sobreviver na selva se o avião cair
A delicadeza típica da aeromoça não é tão necessária na hora de cortar a cabeça de uma galinha e de beber o sangue da ave. Menos ainda quando ela precisa rastejar na lama ou montar armadilhas para matar passarinhos e roubar seus ninhos para alimentar uma fogueira.
Essas habilidades, entre outras, são levadas ao limite no curso obrigatório de sobrevivência na selva para quem quer ser aeromoça ou comissário de bordo.
O R7 acompanhou no sábado (16), em Juquitiba (66 km de São Paulo), um desses cursos, promovido pela Ceab (Centro Educacional de Aviação do Brasil).
Veja fotos da sobrevivência na selva
No melhor estilo “pede pra sair”, os 217 aspirantes a comissário de bordo e aeromoça são chamados pelo número estampado no boné, enquanto desbravam e aprendem a retirar insumos da mata fechada. O objetivo do curso exigido pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) é simular como seria sobreviver em uma área isolada em caso de queda do avião. Numerar os vivos deve ser a primeira medida de sobrevivência.
Às 7h30, Salmeron Cardoso, diretor do Ceab, recebe os alunos vestido com roupas camufladas. Aos berros, exige que eles andem enfileirados e em grupos, e informa que pontos serão perdidos e que a reprovação é iminente para aqueles que não seguirem as regras.
Isto é, nas próximas 12 horas de jornada, é proibido comer e beber algo que não seja água e punhados de sal e açúcar. Falar ou dar risada enquanto instrutores falam também é motivo de punição. “Não confie nas pessoas que estão atrás de você”, foi seu primeiro conselho.
Fim de festa
O clima, então festivo entre os jovens, na maioria na casa dos 20 anos, fica tenso. E piora quando Salmeron escolhe dois “recrutas” para carregar galinhas vivas e amarradas pelas patas mata a dentro.
- 135 vem aqui.
Daysielly dos Santos, de 19 anos, se apresenta. Trêmula e com visível pavor de pegar a ave, Daysi, como era chamada pelos colegas, recusou a ordem. Salmeron, que aparentemente já esperava pela reação, ironizou.
- Tu come (sic) frango? Vem assim, não nasce em pacote.
Depois de alguns minutos de negociação e pressão dos colegas, Daysi chora e abraça a galinha Shayane. O outro animal, um galo maior e mais pesado, vira acompanhante do aspirante 118. Rafael Rodrigues, de 20 anos, não mostra muito entusiasmo, mas segura as patas do bicho rapidamente e volta para seu lugar.
Daysi e Rafael, além de incumbidos de carregar os animais, nutrem a mesma paixão pela profissão desde a infância.
Para a sergipana Daysi, criada em São Paulo, vale fazer sacrifícios para ser aeromoça.
- Desde pequena amo essa profissão. Por ela pego até em galinha. Nunca tinha visto uma, apesar da minha religião ser o candomblé.
Já Rafael sonha em chegar a um alto posto na profissão.
- Sempre foi um sonho de pequeno. Quero chegar a chefe de equipe e ser um grande líder.
Fanfarronices e delação
Na segunda etapa do curso, quando aprenderiam noções de primeiros socorros, sinalização diurna e navegação com bússola, o grupo sentiu ainda mais o clima pouco amigo diante do comando dos policiais militares Everaldo e Cardoso. A introdução do primeiro diz tudo:
- Vim aqui para dar aula, não fazer amigos.
E Cardoso complementa:
- Não quero indisciplina. [O curso] não é coisa de outro mundo. Já morreu alguém aqui? Não, nem vai morrer.
Brincadeiras à parte, a cada hora que passava, os alunos absorviam mais o espírito militar, estimulados pelos monitores – ex-alunos do curso que já são comissários ou em processo de testes em companhias aéreas. As mulheres, maioria entre eles, eram as que mais reclamavam. Revistavam mochilas e cantis.
Numa dessas investidas, sentiram cheiro de bebida energética na garrafinha de um candidato. O resultado foi uma bronca e tanto na frente de todos, além de perder meio ponto e ganhar novo apelido: “Red Bull”.
Outra que tentou burlar as regras, a aspirante 214, foi acusada de comer uma barra de cereal quando foi ao banheiro (o que, na selva, significa um canto qualquer). Além do buchicho dos colegas para descobrir quem era a “traidora”, uma das monitoras esperou um grande grupo se juntar para contar a façanha a Everaldo.
A lição de moral foi daquelas, além do castigo: menos um ponto em sua contagem e na de seu grupo. A aluna negou o ocorrido ao R7, mas pediu para não ser identificada.
As escapadelas de ordem, nos fizeram procurar pela aspira de número 171. Mas ela estava mais preocupada em mostrar que tinha estômago para beber o sangue do galo degolado por uma de suas companheiras de grupo.
Sangue, penas e lágrimas
O momento de matar, depenar e retirar os órgãos da galinha era um dos mais aguardados pelos alunos. A tortura sobrou para Shayene, a galinha. O propósito da aula prática é mostrar como e o que pode ser aproveitado da ave quando as coisas ficarem difíceis em um possível acampamento de sobreviventes. Curiosamente, nenhum dos candidatos questionou se seria fácil ou possível achar galinhas em uma selva.
Mas no sangrento abate de Shayene, por exemplo, nem o coração da ave foi poupado. Uma candidata empolgada o engoliu para espanto de todos. Outra, a de número 171, tomou o sangue como se fosse um bom vinho – a intenção era mostrar que tinha estômago para passar pela prova.
Diferentemente da morte da pobre Shayene, o galo teve morte mais lenta. Após o sacrifício, com o pescoço no chão e parte do sangue em um copo, alguns se encorajaram a bebê-lo, mesmo coagulado, por livre e espontânea pressão dos instrutores. E mesmo depois de tantas lágrimas e ânsia, os candidatos ainda precisaram depená-lo e despelá-lo.
Carreira: sonho e realidade
As mulheres, maioria no curso, sonham em cruzar o mundo e ganhar bem com a carreira. O salário de aeromoça e de comissário varia entre R$ 1.300 e R$ 2.500, em voos nacionais, e pode chegar a R$ 4.000 em trajetos internacionais. Essa promessa, aliada ao aumento da demanda de voos nos aeroportos e dos eventos mundiais, enche os olhos dos candidatos.
Que o diga a baiana Lorena Magalhães, de 22 anos, que trabalha na área de telemarketing em uma companhia aérea em São Paulo. A profissão de aeromoça, segundo ela, pode ser uma chance de ela subir na empresa onde trabalha. E, para tanto, diz estar preparada para o que vier.
- A selva dá medo, mas é uma coisa necessária. Se precisar, a gente come tudo, até olho de cabra.
Tanta coragem é vista também nos olhos do paraguaio Leandro Bueno Cardoso, de 26 anos, com sotaque carregado. Ele pretende deixar a carreira de agrônomo para se tornar comissário.
- Fiz a faculdade por causa dos meus pais, mas sempre adorei voar e acho que essa carreira tem possibilidade de fazer crescer.
A conclusão do curso de formação de aeromoça e comissário de bordo leva, em média, de três a seis meses, de acordo com a quantidade de aulas semanais. Como pré-requisitos, basta ter entre 19 e 29 anos, segundo grau completo e alturas mínimas de 1,58 m, para mulheres, e 1,65 m, para homens, além de conseguir aprovação no exame da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
Prestes a completar o curso, a professora de biologia Jacqueline Cynira Marques do Araújo, de 37 anos, tenta redirecionar a carreira, mesmo com a idade avançada. Depois de começar a trabalhar na área administrativa de uma companhia aérea, ela vê a chance de mudança com bons olhos.
- Parei de dar aulas porque não adianta ensinar para quem não quer aprender. E nessa profissão vejo perspectiva de crescimento.
Otimismo semelhante tem Gabriela de Oliveira Silva, de 19 anos, monitora do curso pelo segundo ano consecutivo. Loira e magra, a jovem está no limite de altura – diz ter 1,58 m - que pode lhe render dificuldade de conseguir o emprego. Ela também já trabalha em uma companhia aérea, mas no departamento comercial.
- O mínimo é 1,60 m, mas acredito em algo divino. Se entrei lá [na companhia], não foi por acaso.
Salmeron explica que esses detalhes fazem mais diferença no dia a dia do que na selva e que não são empecilho para os que querem fazer o curso, apesar de o aluno ser avisado antes que poderá ter mais dificuldades de inclusão no mercado.
Segundo o diretor, a altura é determinada para garantir o alcance do compartimento de bagagens de maneira confortável e do uso da força necessária para empurrar uma porta de emergência.
Caso quisesse ser aeromoça, por exemplo, a repórter desta matéria, com estatura fora do padrão, seria convidada a atuar em outra função, de acordo com Salmeron.
fonte r7