Por que existe tanta violência?

Adão Clóvis Martins dos SantosSociólogo, professor na PUCRS, Porto Alegre, RS.

Cada dia que passa a questão da violência fica mais séria e preocupante. Discutir o assunto, buscando entender suas causas é importante.
O professor Adão Clóvis Martins dos Santos, analisa o assunto, questionando e provocando o debate.
  • Quem é responsável por tanta violência em nossa sociedade?
    Ao longo da história do século XX, nós verificamos um confronto de dois projetos: o socialista, centrado no conceito de companheiro; e o capitalista, centrado no conceito de cidadão. Esses projetos fracassam com o surgimento do neoliberalismo. Torna-se, então, hegemônico não mais o cidadão, não mais o companheiro, e sim o cliente. E quem é cliente? Cliente é quem tem renda, quem tem poder de compra. Os indivíduos que não têm renda não contam. Alguns chamam essa população de "underclass", subclasses. Mas o sociólogo espanhol, Manoel Castells utiliza o termo "camadas descartáveis", camadas irrelevantes, para designar um conjunto de indivíduos que estão à margem, sem a menor perspectiva de se inserir na sociedade. São camadas sociais que não são mais necessárias, ou seja, são os excluídos. Vivem dos benefícios do estado previdenciário, ou então procuram de certa maneira se inserir nesta economia subterrânea, ou seja, na indústria do crime, do narcotráfico, do crime organizado. E esta inserção nesse mundo crime torna-se um modo de vida típico desta camada chamada de subclasses.
  • Portanto, a lei do mercado, a competição, o individualismo tem a ver com o surgimento desta indústria do crime?
    Sim, porque o processo desta nova sociabilidade é um processo que busca economicizar (tornar econômico) aquelas relações que se estabeleciam em outras esferas: relações que se manifestavam na esfera da cultura, da política, da educação e na própria esfera emocional. Hoje, por exemplo, se fala em déficit de democracia, ou seja, isto é economicizar relações políticas; fala-se também em déficit emocional. Quando acaba um relacionamento amoroso entre um garoto e uma garota, o que normalmente ela diz? "Veja só, e eu que investi tanto naquele cara", ou seja, aqui nós temos um exemplo muito claro de como o econômico passa a explicar relações que se estabelecem em outras esferas, no caso da sociedade e da vida do indivíduo. Outro exemplo: o pai muitas vezes diz para o filho, "você tem que se sair bem, ter interesse, porque, afinal de contas, eu estou investindo em você". Esta frase seria completamente incompreensível há 20, 30 anos atrás. Um pai jamais diria que estaria fazendo um investimento num filho. Aqui nós temos a presença de um léxico que explica a hegemonia neoliberal. Podemos então perceber esta nova sociabilidade, e ela é completamente refratária a qualquer projeto que busque estabelecer uma nova solidariedade social.
  • Quer dizer que nos países desenvolvidos se percebe o mesmo fenômeno?
    Sim. O problema no Brasil é que a esses problemas derivados da hegemonia do mercado, neoliberal, somam-se também os problemas derivados do atraso. Esta é a diferença. Ou seja, nós padecemos de um duplo processo de exclusão, que gera a violência: padecemos do problema do atraso, derivado de uma brutal concentração de terra, de renda, e os novos problemas, ou seja, o desemprego, a precarização das relações de trabalho, tudo isso faz com que muitos indivíduos passem a buscar na economia subterrânea a sua sobrevivência.
  • Os Meios de Comunicação costumam dizer que a violência aumenta por falta de policiamento. Isto não confere?
    A grande mídia, de certa maneira, trabalha a questão da violência de uma forma que produz no telespectador, na sociedade em geral, um efeito demagógico e despolitizante, principalmente sobre as camadas subalternas. E isto estimula uma ação conservadora que, da mesma maneira que desmobiliza movimentos críticos, ela possibilita também uma resposta extremamente conservadora para as camadas subalternas. Elas passam a entender o problema da violência no Brasil, necessariamente, como um problema de aumento do contigente de policial militar, do aumento de presídios. E se busca até discutir a questão da pena de morte, ou então aceitam ações demagógicas, que tendem a despolitizar o processo da violência, como, por exemplo, este projeto de desarmar o Brasil. E aí se diz que o Brasil possui 2,9% da população mundial, mas em compensação tem 10% da violência. Busca-se estabelecer uma corelação entre o crescimento populacional e o índice de violência, como se a violência derivasse do crescimento populacional, como a querer dizer que se nós tivéssemos uma população menor, possivelmente a violência seria menor. É uma explicação completamente equivocada, conservadora e arcaica. A violência cresce não porque cresce a população, mas porque os atores que a engendram se potencializam.
  • E o jovem hoje é mais violento?
    A grande dificuldade de se inserir no mercado de trabalho formal devido à ausência de emprego, necessariamente determina o ingresso desse jovem nesta economia subterrânea, e até no crime, no narcotráfico. O desenvolvimento, o processo de acumulação levado a cabo pelas políticas neoliberais, que no plano esconômico, além de flexibilizar e precarizar as relações de trabalho, provoca desemprego. No plano ideológico procura criar um novo tipo de homem, adequado às necessidades do seu projeto econômico. E que homem adequado é este? É o cliente. E o que se requer do cliente? Cliente é quem tem renda e é este o aspecto que esta nova sociabilidade vai buscar e vai ressaltar. Não existe neste projeto a menor possibilidade de se pensar em solidariedade social. E então o jovem aprende a competir individualmente e a relação de solidariedade passa a ser algo completamente distante, passa a ser coisa de babaca.
  • E o que os jovens, os grupos de jovens, podem fazer diante desta realidade?
    Em primeiro lugar, há uma necessidade inadiável de se pensar em um novo projeto de sociedade, em que esteja presente de forma urgente o desenvolvimento de uma nova solidariedade social. Isto não significa que esta nova solidariedade social seja um retorno ao passado, àquelas instituições que regraram a sociedade. Não significa que tenhamos que retomar as tradições, mas desenvolver novas tradições, desenvolver instituições que não restrinjam, que não comprimam as demais esferas do indivíduo e que não ressalte tão somente a esfera econômica. Deverá ser um projeto que procure ver o indivíduo não somente como um cliente. O neoliberalismo transforma estas outras esferas em aspectos secundários, quando não consegue economicizar e transformá-las também em mercadorias. Então precisamos buscar desenvolver um novo projeto de sociedade, de uma nova solidariedade social, que não veja a pessoa humana tão somente nessa figura restrita e apertada de cliente.
  • E a escola, como poderia tratar o assunto?
    Em primeiro lugar, não escamoteando o problema. O problema da violência existe e os índices tendem a aumentar. Portanto, o primeiro passo é reconhecer que ela existe. E, num segundo momento, é não propiciar explicações demagógicas, buscando entender a questão da violência, comparando com outras sociedades no sentido de verificar o que existe de estrutural nesta violência, o que existe de conjuntural. Eu creio que o papel da escola é fundamental, até porque um dos grandes equívocos que ocorreu nos últimos anos no Brasil foi o momento em que as escolas passaram a designar os seus alunos como clientes. Elas não verificaram o risco que elas estavam correndo, porque não se estabelece relações de solidariedade com clientes, é uma relação de negócios. A escola tem que ver que ela tem um compromisso e que o aluno não é um cliente. É um ser humano que busca formar-se na vida. Esta relação é completamente oposta, antagônica à relação que vê a pessoa como cliente. Eu creio que é importante criar um processo de diálogo com os alunos, com a consciência crítica, no sentido de que eles possam vir a cobrar das demais instituições que promovem o debate público, inclusive os próprios meios de comunicação. Eu diria que esta é uma possibilidade bem imediata, a médio e curto prazo: a formação de indivíduos conscientes dos seus limites e dos limites da sociedade.

As causas da violência

A taxa de violência, embora cresça, ela não cresce de uma forma homogênea. Existe uma certa heterogeneidade. Ela aumenta em alguns países mais, em outros menos. Mesmo no Brasil, nós podemos perceber taxas diferenciadas. E não há lógica com relação ao crescimento populacional. Dados publicados por alguns jornais e também pelo Ministério da Justiça, falando sobre a violência nos Estados, mostram a variação no índice de homicídios nas últimas duas décadas, no Brasil.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, ocorriam oito por cem mil habitantes, e em 1998 passou para 15 por cem mil; no Espírito Santo, de 15 por cem mil, passou para 58; no Rio de Janeiro, de 26, para 53. Portanto, verifica-se uma heterogeneidade no crescimento da violência.
No Brasil nós temos uma violência histórica, cujas raízes não derivam necessariamente do que denominamos hoje de globalização, mundialização, mas são causas históricas derivadas da grande concentração de renda, da grande concentração de terras, da impunidade.
O problema é que a essas causas históricas somam-se novas. Se nós temos, por exemplo, delitos, crimes derivadas do atraso, do arcaísmo, surgem agora também delitos, crimes que derivam do que chamamos de modernidade ou pós-modernidade. Nós estamos expostos à dupla lógica: à perversidade do atraso e à perversidade da modernidade.
Quando nós procuramos entender a questão da violência, verificamos que ela também cresce nos países desenvolvidos e ela cresce tendo em vista uma modificação radical nessas sociedades. A partir do momento em que nessas sociedades se tornou hegemônica a ideologia neoliberal, a partir do momento em que o estado desaparece ou se enfraquece no sentido de gerenciar, administrar a sociedade, e isso se transfere para o mercado, esses problemas passam a ocorrer de forma mais aguda. Se fizermos uma análise histórica, verificamos que existia uma sociabilidade que era desenvolvida por uma série de instituições, por exemplo, a família, a Igreja, a escola.
Estas instituições foram, em diferentes momentos e em diferentes sociedades, agências socializadoras e que produziram um tipo de homem e um tipo de mentalidade adequado ao seu projeto. E de certa maneira estas agências socializadoras tinham como pressuposto uma solidariedade social. A partir do momento em que estas agências socializadoras se enfraquecem, o mercado passa a ocupar o seu lugar e o mercado, enquanto agência socializadora, não tem nenhum mecanismo que procure tratar o homem como um ser humano.
O mercado não possui nenhum mecanismo que promova a realização de uma solidariedade social. O mercado busca produzir clientes.
Fonte: Mundo Jovem