Como ler as notícias

Ninguém me provoca como ele. Não aquela provocação tola, mas uma cutucada de verdade, que te faz pensar se você está mesmo fazendo as coisas de uma maneira certa - ou ainda, se está olhando o mundo de uma maneira, digamos, eficiente. Quando você menos espera, lá vem ele com uma novo informação, um novo ponto de vista. Como este:
"Nós talvez precisamos de uma certa ajuda para entender o que as notícias estão fazendo conosco: toda a inveja e o terror, toda a excitação e a frustração, tudo que nos é contado e, ainda assim, nos deixa com a impressão de que estaríamos melhor de não tivéssemos sabido de nada".

Este é Alain de Botton na introdução de seu novo livro: "The news: a user's manual" - recém-lançado agora nos Estados Unidos. A edição brasileira não deve melhorar, uma vez que seus trabalhos são, felizmente, razoavelmente populares por aqui. Quem passa por este espaço com frequência também reconhece seu nome, já que o citei mais de uma vez (faça uma pesquisa no blog com seu nome e você vai ver). De sexo a religião - passando por literatura e (talvez seu assunto mais delicioso, mas eu sou suspeito) a "arte de viajar" -, este filósofo moderno, que certa vez até tive o prazer de visitar, consegue mesmo me provocar. Ainda que, às vezes, de maneira negativa.

Comprei seu livro mais recente na última viagem que fiz (cuja segunda parte do meu passeio aleatório por Nova York eu tinha prometido para hoje, mas vou ficar devendo por conta de meu entusiasmo renovado por Alain de Botton - sei que você vai entender). E desta vez ele discorre sobre a imprensa: "the news", como ela é chamada popularmente na língua inglesa (muitas vezes revezando com "the press", uma tradução mais literal para o oficio). Em seus trabalhos mais recentes, ele tem escrito de maneira cada vez mais específica sobre um assunto - religião, trabalho, arte. E seu tom de "auto-ajuda para a alta mente" tem perigosamente se aproximado, a cada novo livro, da voz mais desesperada de um pregador religioso.
Mesmo assim, leio cada parágrafo que Alain de Botton escreve com atenção de um pupilo diante de um mestre. Afinal, no meio de algumas propostas absurdas - e até, às vezes, fora da realidade (que, entendo, é uma das funções da filosofia: pensar além deste mundo que observamos) -, de repente ele vem com preciosidades como esta (na minha tradução sempre apressada):
"Por conta da sua dimensão e complexidade, o mundo vai sempre superar a capacidade de qualquer entidade de fazer perguntas férteis sobre ele. Órgãos de imprensa são apenas capazes de oferecer mapas rascunhados e às vezes profundamente enganados de uma realidade que continuará a ser infinitamente esquiva e variada."
E, lembrando que este é um autor que ficou conhecido por um livro que se chamada "Como Proust pode mudar sua vida" (relançado recentemente no Brasil pela editora Intrínseca), ele cita outro de seus autores franceses favorito para concluir:
"Sinais de alarme devem então soar nas nossas mentes, como fizeram na de Flaubert, diante de cada encontro com qualquer ponto de vista que tenha atingido um nível de consenso ligeiramente consistente. Nós devemos ficar sempre desconfiadamente alertas para a potencial imbecilidade grosseira que se esconde por trás da letra mais bonita e das mais confiáveis e competentes manchetes. Nós devemos ficar tão atentos aos clichês da mídia quando Flaubert ficava com os da literatura. Os últimos podem destruir um livro; os primeiros, uma nação."
A premissa não poderia ser mais deliciosa. Afinal, Alain de Botton, como qualquer pessoa que pensa, deve andar incomodado com a qualidade (talvez até com a quantidade) do que passa por "imprensa" hoje em dia. Com a popularização cada vez mais forte dos meios de comunicação (o que é algo extremamente positivo) veio também a banalização cada vez maior do que é considerado notícia - um processo que, com a internet, tomou proporções surreais. Não sou formado em jornalismo - aprendi o ofício com a experiência. Mas uma das primeiras lições que tive foi sobre apuração: para ser no mínimo respeitada, cada reportagem deve começar com uma boa colheita de dados. Depois seguir com uma razoável atenção para o outro lado da questão. E, num mundo ideal, concluir com uma inspirada análise do que foi apresentado. Mas quem disse que estamos vivendo num mundo ideal?
O que vemos todos os dias é uma assustadora e crescente desinformação.
Em 1993, li um livro interessantíssimo. Chamava-se "The age of missing information" - que pode ser traduzido toscamente por "A era da desinformação". Para escrevê-lo, seu autor, Bill McKibben, passou por um experimento interessante. Ele assistiu 1.700 horas de programação que havia gravado em apenas um dia do seu cardápio de TV a cabo disponível na operadora de sua cidade, Fairfax, no estado americano de Virgínia. (Na época, eram 93 canais). E comparou essa experiência com a de passar 24 horas sozinho na natureza, isolado em uma montanha na região de Adirondacks. Advinha qual das duas situações ensinou mais coisas para ele?
Seria quase um crime - e leviano da minha parte - eu resumir seu pensamento riquíssimo em apenas uma frase. Mas, apenas a título de continuarmos a falar de Alain de Botton hoje, digamos que a conclusão que McKibben tirou de tudo é a de que estamos cada vez mais mal informados, apesar do fluxo cada vez maior de "notícias" que nos é oferecido. Entre os canais que o autor gravou para assistir, tinha também os pioneiros de 24 horas de notícia por dia - mas nem assim, como ele conta, foi possível olhar o mundo em volta e ter a mínima noção do que estava acontecendo. E isso, só lembrando, era no comecinho dos anos 80, quando a internet ainda estava engatinhando. Se a confusão já era geral naquela época, imagine agora.
(Escrevendo isso, lembrei mais uma vez da declaração da missão jornalística que a reverenciada revista "The Economist" traz na sua página inicial a cada número, desde sua primeira circulação no século 19: "Publicada pela primeira vez em setembro de 1843, para tomar partido na grave disputa entre a inteligência, que impulsiona para frente, e a desprezível, tímida ignorância obstruindo nosso progresso". É um pensamento que ressurge na minha cabeça a cada vez que eu abro a internet com a honesta intenção de me informar - mas eu, claro, divago...).
O que Alain de Botton tenta dessa vez então é nos oferecer um guia para navegar nesse mar de informações. Ele não nos oferece muita esperança. Suas propostas e ideias parecem sobreviver num mundo que é bem distante desse que vivemos hoje. Assim como no seu brilhante livro sobre instituições religiosas ("Religião para ateus", Intrínseca), seus conselhos muitas vezes beiram o absurdo: "O noticiário não deveria suprimir reações negativas, mas sim nos ajudar a ficar irritados com as coisas certas, na medida certa, e pelo tempo certo - parte de um grande projeto construtivo". Mesmo? Botton parece muitas vezes esquecer que os órgãos de imprensa são, sobretudo, empresas que sobrevivem de seu negócio - e que muitas vezes usam essa justificativa para explicar seus exageros em busca de leitores / ouvintes / telespectadores / internautas. Mas, mais uma vez o desculpo: não será essa a missão do filósofo, imaginar mundos alternativos?
O "jornalista dentro de mim" tende não só a concordar com a "utopia" de Botton, mas também torcer para que caminhemos um dia para o equilíbrio entre verdade, opinião e bom senso que ele propõe. Mas meu lado leitor (ou qualquer outra designação de quem estiver na outra ponta do fluxo de notícias) tem vontade de rir da maioria de suas propostas. Porém, não é uma risada de escárnio - posso garantir. É de vergonha e desespero.
Pela peculiar trajetória da minha carreira, tive (e tenho esporadicamente até hoje) a oportunidade de poder estar dos dois lados da imprensa: o de quem entrevista e o de quem é entrevistado - agente e sujeito da notícia. E não canso de me surpreender com algumas descobertas. Por exemplo, em 2007 fiz uma série de entrevistas com autores americanos e mais de uma vez recebi, ao final do encontro, um comentário positivo na linha: "Gostei, porque você realmente leu meu livro para se preparar". Nele estava embutido o desconforto de entrevistas anteriores, com repórteres americanos mesmo, que procuravam o autor informados apenas pelo resumo do seu trabalho - mas não pela obra toda. Mas não deveria ser sempre assim, você se preparar antes de fazer uma pergunta?
No "outro lado", com frequência alarmante, sou abordado por jornalistas que não têm a mínima ideia do que estão perguntando e procuram, invariavelmente, apenas as aspas (como chamamos no jargão jornalístico uma declaração) que possam causar um choque, um mal entendido, e um consequente desconforto - obviamente induzido. Vejo isso repetidas vezes - e não só comigo, mas em infinitas "reportagens" na internet. Seria tudo muito válido, se um elemento não fosse constantemente desrespeitado nesse ciclo feroz de notícias hoje em dia: a verdade.
Em algum lugar deste blog, quando ouvi isso pela primeira vez, abri espaço para falarmos de "verdadices" - minha tradução do termo que, se não me engano, foi popularizado pelo comediante/apresentador americano Stephen Colbert: "truthiness", algo que alguém acredita ser verdade não pelos fatos apresentados, mas pela mera repetição da informação (ou, no caso, desinformação). Esse é um fruto indigesto de uma cultura que consome cada vez mais a própria informação sem nenhum critério para avaliar os detalhes que absorve. Estamos, tristemente, mais e mais atolados na era da desinformação descrita por Bill McKibben. E podemos sair desse cenário? Bem, Alain de Botton acha que sim. Mas não sem transformações radicais - e, na minha avaliação, praticamente impossíveis de serem alcançadas.
Veja o que ele propõe, por exemplo, no capítulo sobre celebridades:
"O impulso de admirar é um traço importante e difícil de apagar da nossa personalidade. Ignorá-lo ou condená-lo não vai acabar com ele. Vai simplesmente jogá-lo para um plano inferior, onde vai se esconder sem se desenvolver ou mesmo sem ser monitorado, predisposta a atacar alvos impróprios. No lugar de suprimir nosso amor por celebridades, devemos canalizá-lo para direções mais frutíferas e inteligentes. Uma sociedade propriamente organizada é aquela em que as pessoas mais conhecidas são aquelas que incorporam e reforçam os mais altos e mais nobres valores sociais benéficos, uma sociedade então onde o reconhecimento de uma celebridade seria uma oportunidade de se orgulhar, e não um motivo de vergonha ou riso auto-depreciativo".
Minha resposta para Alain de Botton: beijinho no ombro!
Claro que estou brincando. Mas assim como o "mundo ideal" imaginado pelo autor está longe (longíssimo) de existir, a estupidez que vemos diariamente na internet - e que passa por notícia - é também uma ficção. Nesse sentido, as palavras de Botton são um bálsamo para quem acredita que ainda é possível reinventar uma sociedade baseada na verdade e na transparência.
No entanto, transparência é justamente algo que vemos cada vez menos na informação de hoje. Blogs e twitters contribuem cada vez mais para a confusão - e no meios de pequenos interesses, que só recompensam as más fontes de desinformação (e nunca o leitor / ouvinte / telespectador / internauta), só acrescentam ruído ao já cacofônico cenário do jornalismo. E nossa melhor chance é torcer para que as pessoas fiquem cada vez mais atentas às armadilhas da desinformação. Mas agora sou eu que estou soando tão utópico quanto Alain de Botton...
"As razões pelas quais nós precisamos que os outros fracassem e também porque nos divertimos tanto com a fofoca sobre as gafes deles são, no final das contas, profundamente tristes; isso acontece porque ficamos furiosos com nossa falta de atenção - e tentamos assim conseguir algum alívio punindo outros que aparentemente nos privaram desse nosso direito. A decepção de nossas ambições faz de nós fracassados: pessoas que torcem para as outras fracassarem também". Termino aqui com uma das conclusões do novo livro de Alain de Botton - esta, descrita no capítulo em que fala sobre "notícias de celebridade".
Seria um epitáfio cômico, se não fosse tão lúcido. Mas enquanto alguém está tentando digerir um parágrafo bem escrito como esse, milhares de outros leitores se debruçam sem resistência ao apelo de duas breves linhas escritas numa cor chamativa. É mais fácil se entreter com um verniz de notícia do que refletir sobre o que está realmente acontecendo. Entendo. Eu mesmo já caí nessa tentação. Não acho que temos volta - e nesse sentido, sou um pouco mais pessimista do que Botton. Mas, depois de anos convivendo nesse curioso universo da informação, pelo menos aprendi a me divertir com isso. E torço para que você se divirta também, porque a alternativa para isso é aquilo que a "Economist" mais teme: a vitória da tímida ignorância...
                                                                                                  Por Zeca Camargo